domingo, 28 de fevereiro de 2010

Trecho do livro "Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação"

Trecho do diário de Seymour

"Fazia um frio terrível na parada vespertina e, apesar disso, uns seis homens desmaiaram na execução interminável do Hino Nacional. Suponho que, se a pessoa não tiver uma circulação sangüínea normal, não consegue suportar o artificialismo da posição militar de sentido. Especialmente se estiver segurando um rifle pesadíssimo no gesto de apresentação de armas. Eu não tenho circulação nem pulso. Sinto-me em casa na imobilidade. O andamento do Hino Nacional e eu estamos em perfeita sintonia. Para mim, seu ritmo é o de uma valsa romântica.
Depois da parada, tivemos uma licença para sair até a meia-noite. Encontrei-me com a Muriel no Hotel Biltmore ás sete. Dois drinques, dois sanduíches de atum comprados numa drugstore, e depois um filme que ela queria ver, alguma coisa com a Greer Garson. Olhei para ela várias vezes no escuro, quando o avião do filho da Greer Garson foi dado como perdido em ação. Sua boca estava aberta. Absorta, preocupada. Total identificação com a tragédia da Metro-Goldwyn-Mayer. Senti um misto de consternação e felicidade. Como eu amo seu coração tão carente de discernimento, como eu preciso dele. Ela olhou para mim quando as crianças no filme trouxeram os gatinhos para mostrar à mãe. Muriel adorou os gatinhos e queria que eu também os adorasse. Mesmo no escuro, podia perceber que ela se sentia afastada de mim como em outras ocasiões em que eu não compartilhei automaticamente as coisas de que gosta. Mais tarde, quando estavamos bebendo alguma coisa na estação ferroviária, ela me perguntou se eu não tinha achado os gatinhos 'muito simpáticos'. Já não usa a palavra 'engraçadinhos'. Quando é que a assustei a ponto de ela abandonar seu vocabulário normal? Como sou mesmo um chato, mencionei a definição de sentimentalismo de R.H. Blyth: uma pessoa é sentimental quando confere a alguma coisa mais ternura do que Deus a ela confere. Disse-lhe (pomposamente?) que Deus sem dúvida ama os gatinhos, mas, muito provavelmente, não com botinhas nas patas e em tecnicolor. Ele deixa esses toques imaginativos para os escritores de roteiros cinematográficos. M. pensou sobre o que eu havia falado e pareceu concordar comigo, mas não deu a impressão que o 'conhecimento' era muito bem-vindo. Ficou lá sentada, remexendo os cubos de gelo no copo e se sentindo muito distante de mim. Ela se preocupa com o fato de que seu amor por mim vai e volta, aparece e desaparece. Duvida da realidade desse amor apenas por não ser tão permanentemente alegre quanto um gatinho. Deus sabe que isso é triste. A voz humana conspira para profanar tudo o que existe no mundo."


Um comentário:

  1. uaaau! adorei!
    você é muito cult Lu :D
    hahahaha adoro muuuito você!

    beeeijo

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